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domingo, 10 de julho de 2016

Perugia-Livorno, a ligação comunista do calcio.



Num país onde um partido centro-direita se manteve no poder durante mais de 40 anos, ser de esquerda era mais do que uma opção. Era uma forma de protesto. O Calcio é, também nisso, um dos melhores espelhos da sociedade italiana. Se a maioria dos clubes é apoiado por Ultrás que formam a ala mais violenta da extrema direita italiana, há um eixo que continua a defender o velho ideal da Itália comunista dos anos 40. Entre Perugia e Livorno a distância não é de quilômetros. É de fé num ideal...


O histórico Partido Comunista italiano nasceu numa casal pequena junto ao porto da cidade toscana de Livorno.
1921 era uma data complicada na pouco ortodoxa vida social italiana e com a ascensão dos "camisas negras" de Mussolini ser comunista era um problema sério. A não ser que se fosse de Livorno. Numa cidade quase "exclusivamente" vermelha não havia o risco de denúncias, perseguições e sustos. A cidade era um bloco sólido de resistência e daí surgiram os grandes lideres que espalharam a mensagem que chegava da longínqua URSS pelo resto do país. Em Perugia, um centro industrial no coração da bota - a igual distância de Roma e Florença - a mensagem chegou e ficou. Durante o cem anos seguintes um espírito de irmandade uniria forçosamente os destinos de ambas as cidades. E foi o futebol, inevitavelmente, que reforçou ainda mais esse casamento ideológico.
O futebol italiano é provavelmente um caso único na Europa ocidental. Em nenhum outro país o que passa no mundo futebolístico encontra paralelos tão significativos com o resto da sociedade. Com a politica, com a economia, com a religião, com os media. A Itália do pós-guerra não caiu em mãos comunistas depois de uma ágil manobra americana. Mas os 40 anos de governo democrata-cristão apenas serviu para deixar claro que os italianos são um povo de extremos. Se o governo estava ao centro, a luta no futebol fazia-se entre a extrema direita e a extrema esquerda. A primeira, mais popular ao Norte e no coração do Lácio, deu origem aos grupos Ultrá, as claques organizadas que transformaram o futebol italiano num campo de batalha e fizeram escola no resto da Europa a partir dos anos 70. Os Ultrá, habitualmente organizações com apoios económicos de grupos da extrema direita neofascista transformaram-se no cancro do Calcio e deram a várias clubes um cunho profundamente ideológico. As saudações fascistas dos adeptos da Lazio, os gritos racistas dos adeptos do Hellas Verona, Bologna ou da Fiorentina e os atos destrutivos dos adeptos neruazurris do Internazionale transformaram o inocente futebol italiano num campo de morte e destruição. Do outro lado, a esquerda italiana procurou distanciar-se do fenômeno, mas houve sectores que aceitaram o desafio. Os gritos de revolta da Roma dePasolini, o punho levantado de Sollier e a raiva de Lucarelli. Os dois últimos redefiniram em trinta anos o comunismo futebolístico italiano.
 
As Brigada Autonomi Livornese são conhecidas por seguir o seu clube, o Livorno, até ao inferno. Ou pelo menos até à Sardenha.
Um quente domingo, dia de jogo da Serie A no Outono de 2003, três carros desceram toda a Itália, atravessaram o estreito de Messina e chegaram até Palermo (2000 mil kms) para apoiar a sua equipa. Viajaram de carro apenas com uma tarja que dizia "BAL - Libertá livornese" e nem os deixaram entrar no estádio. Os BAL - fundados em 1999 como claque de extrema-esquerda tenazmente violenta - representam  o lado mais esquerdista do futebol italiano. Admiradores de Josef Stalin - inauguraram uma estatua ao russo à porta da sua sede - este grupo de ultrás encontrou sempre apoio na sociedade livornesa. E a eles pertence ainda hoje um fiel seguidor dos ensinamentos do partido. Christian Lucarelli, filho de um estivador livornês, desde sempre soube que ali o clube, a cidade e o partido formavam parte de uma mesma entidade colectiva e proletária. Lucarelli cresceu em Shangai, um bairro proletário construido pelas autoridades fascistas nos anos 30, com a vontade de saltar ao relvado do seu clube de infância. Mas demorou até cumprir o seu sonho. Jogou em vários clubes de segunda linha, envolveu-se em problemas com a Federazione depois de celebrar o seu primeiro golo com os sub-21 (num jogo em Livorno) exibindo uma camisola de Che Guevarra e depois de vários anos lá conseguiu estrear-se pelo seu Livorno. Pagando do seu próprio bolso a carta de liberdade. Uns mil milhões de liras que deu título a um livro escrito pelo seu próprio agente que se tornou um best-seller local. Quando chegou, desatou a euforia dos adeptos, levou o clube da Serie B à Seria A (conseguindo na segunda época chegar aos postos europeus e sempre com o 99, ano da fundação dos BAL, às costas) e a cada golo celebrava com o punho fechado no alto lembrando outros tempos. Na sua etapa prévia tinha passado porPerugia. Não deixou grandes recordações como goleador, mas o seu espírito fez reviver os fantasmas de outra era, onde a cidade úmbrica era outra "Livorno" no meio de Itália.
Durante os anos 70 a cidade albergou outro dos grandes futebolistas ideólogos da esquerda italiana. Paolo Sollier, defesa central duro e implacável, entrava em campo com um livro na mão e um punho no ar, que erguia repetidas vezes quando a equipa marcava. A sua camisola vermelha e calções brancos - tão similar ao equipamento do Livorno - lembrava também o traje da URSS que idolatrava profundamente. Durante largos anos foi o símbolo da resistência numa era onde o espírito neofascista dos jogadores italianos - particularmente os da AS Lazio que andavam sempre armados e preparados para começar uma discussão - começava a conquistar adeptos em todo o país. Sollier, como Lucarelli, nunca foi um grande jogador. Mas era um símbolo respeitado e odiado em iguais partes. Falava antes e depois dos jogos com soltura, questionava decisões politicas e era um dos grandes defensores do movimento sindicalista dos jogadores que começava, só então, a ganhar forma. Anos depoisLucarelli tornou-se o espelho do jogador da contra-revolução, pronto a abdicar do dinheiro, da fama, das mulheres e dos carros para cumprir um sonho: jogar no clube que para ele exemplifica um estado de alma.
Perugia e Livorno passaram por momentos complicados na sua história. Os primeiros até viram o filho de Kadhafi jogar durante 45 minutos depois de ter comprado ações do clube (tal como sucederia depois com a Juventus) e envolveram-se em polemicas sem fim depois do trabalho auto-destrutivo do presidente Luciano Gaucci. O Livorno nunca teve o dinheiro necessário para combater e elite e passou a sua história subindo e descendo de divisão com a naturalidade de quem encara o jogo como um processo revolucionário em constante movimento. Num país onde Berlusconi dita a lei, o futebol pauta o ritmo. O primeiro-ministro usou o jogo - e o sucesso do seuAC Milan - para se dar a conhecer ao país. Não foi uma novidade já que durante largos anos a direita italiana aproveitou-se do fenômeno popular para criar verdadeiros pequenos-estados ideológicos que utilizam a bola como pretexto para propagar a sua ideologia. No meio dessa luta, o eixo Perugia-Livorno continua vivo. Como o outro lado do espelho, aquele que entende que o futebol, em Itália, e como tudo, é mais um palco de batalha entre os dois extremos de uma luta sem fim como o final de 1900, esse filme tão profundamente italiano e futebolístico (apesar do futebol primar pela sua ausência) de Bertolucci. Mas isso é outra história...

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