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quarta-feira, 20 de abril de 2016

Quem foi Símon Bolívar ?



Simón Bolívar (1783-1830) foi o principal líder da independência da América do Sul espanhola. Há figuras associadas à emancipação em diferentes países, como José de San Martín na Argentina, Bernardo O’Higgins no Chile ou Francisco José de Paula Santander na Colômbia. Mas nenhum deles tem a projeção continental expressa pela figura de Bolívar: as principais cidades hispano-americanas batizaram praças e avenidas em sua homenagem. Na capital peruana, Lima, último bastião da resistência espanhola, o Congresso Nacional situa-se na “Plaza Bolívar”. E em Bogotá, na Colômbia, a principal praça da cidade também tem esse nome. O nome de Bolívar batizou até mesmo um país: a Bolívia.

Nascido em Caracas, na Venezuela, Símon Bolívar é reconhecido, além de sua expressão continental, como um prócer da Venezuela. Essa dupla reivindicação da sua figura – como “libertador” da América espanhola e como herói venezuelano – está ligada à uma trajetória política indissociável do processo de independência da região, que agora examinaremos.
Em uma perspectiva estrutural, a desintegração do Antigo Sistema Colonial deve ser entendida como um aspecto da crise do Antigo Regime, que vigorou na Europa entre os séculos XVI e XVIII. A Revolução Industrial, no século XIX, indicou que os tempos do mercantilismo, do exclusivo metropolitano e da dominação ibérica e holandesa na América Latina cederam lugar para o liberalismo, o livre comércio e a hegemonia inglesa.
Assim como na América portuguesa, o desencadeamento do processo emancipatório nas colônias espanholas está ligado a acontecimentos no continente europeu. O avanço das tropas napoleônicas em terras espanholas provocou a abdicação do rei Fernando VII em 1808. Em um contexto em que a metrópole estava ocupada, criollos (descendentes de europeus nascidos na América) ilustres proclamaram sua fidelidade ao rei nas principais cidades hispano-americanas, constituindo os chamados cabildos. Mas, diferentemente do caso brasileiro, em que a independência será fruto de uma transição pactuada, a América espanhola atravessará anos de guerra.
A dinâmica do conflito é complexa, pois os acontecimentos americanos e peninsulares se inter-relacionam. Em linhas gerais, a posição das lideranças americanas evolui de uma fidelidade à realeza para a reivindicação da independência. Isso porque, uma vez derrotado Napoleão, os espanhóis pretenderam reestabelecer o padrão de dominação colonial anterior, ignorando reivindicações dos criollos por maior participação política, expressas inclusive nas Cortes de Cádiz. Assim, as guerras napoleônicas e as disputas entre monarquistas e liberais na Espanha se entrelaçam aos acontecimentos na colônia, desembocando em uma conjuntura revolucionária.
A biografia de Simón Bolívar está embebida por essa conjuntura histórica. Nascido em uma rica família ligada às plantações de cacau, Bolívar teve acesso à educação mais avançada de seu tempo. Entre seus preceptores, dois lumiares do pensamento latino-americano do século XIX, Simón Rodríguez (1769-1854) e Andrés Bello (1781-1865). Em sua temporada na Europa, Bolívar testemunhou o sentido progressista da Revolução Francesa (1789), associado ao fim do Antigo Regime, mas também cultivou um olhar crítico em relação às tendências absolutistas de Napoleão. Em 1805, jurou na cidade de Roma não dar “descanso ao meu braço, nem repouso à minha alma, até que sejam rompidas as amarras que nos oprimem por vontade do poder espanhol”.
De volta a Caracas, participou do primeiro esforço republicano comandado por Francisco de Miranda (1750-1816), que proclamou a independência da Venezuela em 1811. Ao triunfar a reação monárquica, sedimentada pelo desembarque de 10 mil soldados espanhóis comandados pelo General Morillo, em 1815, Bolívar dirigiu-se à Jamaica, onde pretendia organizar uma expedição com apoio inglês. Ali escreveu sua famosa “Carta da Jamaica”, e prosseguiu rumo ao Haiti. Nessa ilha, onde a escravidão fora liquidada nos marcos de um extraordinário processo revolucionário que culminou com a independência em 1804, o líder venezuelano aguçou sua sensibilidade para a questão social e se comprometeu com a abolição.
Em terras venezuelanas, a dinâmica da guerra também ensejava uma radicalização popular do confronto. Do lado realista, tropas comandadas por um aventureiro asturiano chamado Boves acenavam com a alforria e butim aos que se juntassem aos espanhóis, fazendo do confronto uma guerra civil. Bolívar compreendeu a necessidade de ampliar as bases sociais da revolução e o fez. Mais do que alforriar seus escravos e consumir sua fortuna pessoal na guerra, o líder caraquenho rompeu com o horizonte aristocrático da capital e constituiu um exército de base popular.
A combinação de uma notável capacidade política a um reputado talento militar converteu Bolívar no “Libertador” por antonomásia. Entre outras ousadas manobras, dirigiu seus homens a Nova Granada (atual Colômbia), e “durante sete dias marcharam as tropas com água até a cintura”, para depois cruzar os Andes pelo sombrio páramo de Pisba, a 5 mil metros de altura. Após alguns combates vitoriosos, Bolívar entrou triunfante em Bogotá em 1819. Foi fundada a República da Colômbia, que, originalmente, compreendia o território dos atuais estados de Venezuela, Colômbia, Panamá e Equador. A libertação da atual Venezuela seria selada na batalha de Carabobo, dois anos depois.
Consumada a independência ao norte, Bolívar deslocou-se rumo ao Peru. Na cidade de Guayaquil, reuniu-se com o comandante da revolução no Prata, o general San Martín, em 1822. O teor dessa conversação não é conhecido. Mas, a partir de então, Bolívar assumiu a liderança da independência no Peru, sacramentada com a vitória do exército comandado pelo general Sucre na batalha de Ayacucho em 1824, símbolo do fim do império espanhol na América continental.
Ao mesmo tempo que se lutavam as últimas batalhas no Peru, Bolívar convocou uma assembleia para reunir as novas nações americanas no Panamá, ponto de conexão entre a América do Sul e a Central. Compareceram somente delegados da Colômbia, do Peru, do México e da América Central ao encontro, realizado em 1826. O Brasil demonstrou aberta hostilidade à iniciativa, enquanto Argentina e Chile receavam subordinar-se aos desígnios do “Libertador”. Mas quais seriam os seus desígnios?
Há controvérsias sobre o sentido do projeto bolivariano, muitas vezes influenciadas por debates políticos contemporâneos. De modo geral, podemos discernir três aspectos nucleares em seu ideário.

Em primeiro lugar, Bolívar teve como horizonte político a unidade continental. Acreditava que a debilidade da posição internacional das novas repúblicas deveria ser compensada com a sua progressiva aproximação. Esta convicção é sintetizada na máxima: “Para nosotros, la patria es América” (“Para nós, a pátria é a América”, em tradução livre do espanhol).
Por outro lado, embora tenha sido um antimonarquista convicto, a experiência política de Bolívar o inclinava a modalidades centralizadoras de exercício do poder na América emancipada. Por exemplo, defendeu as figuras do presidente e do Senado vitalício. Assim como seu preceptor Simón Rodríguez, Bolívar acreditava que eram necessárias instituições próprias à singularidade americana: “Ou inventamos ou erramos”, dizia seu mestre.
Há quem atribua essas propostas a anseios pessoais de poder. Parece mais plausível associá-las a um genuíno receio de que a precária sociabilidade legada pela exploração colonial fosse esfacelada. De fato, Bolívar viveu para ver a fragmentação da Colômbia original em três estados. E poucos anos após a sua morte, também a República Centro-americana se dividiu em cinco países: El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Costa Rica.
Por fim, os dilemas que afligiam Bolívar evidenciam-se no discurso introdutório à Constituição boliviana, que redigiu em 1826. Nessa ocasião, destacou dois inimigos das nações americanas: a tirania e a anarquia. A primeira é identificada com a monarquia, enquanto a segunda remete ao receio de uma revolução popular. O horizonte revolucionário de Bolívar era anticolonial, republicano e igualitário perante a lei, mas não apontava para mudanças na estrutura de classes da sociedade colonial, nem nas relações de produção. Modificações desta natureza eram vistas como uma ameaça à precária ordem vigente, na qual a prioridade era construir o Estado Nacional.
Visto como “libertador” em metade dos países sul-americanos, Bolívar morreu em 1830 aos 47 anos, consumido pela vida e amargurado com a política: “A América é ingovernável… fazer a revolução é como arar no mar”, teria dito. Sua utopia de unidade continental não prosperou e a chamada Gran Colombia se desfez em repúblicas lideradas por homens que, poucos anos antes, combateram sob suas ordens.
As raízes deste fenômeno devem ser buscadas na estrutura socioeconômica da América espanhola, onde as relações clientelistas que caracterizavam o caudilhismo pressionaram por uma “ruralização do poder”, conforme descreve o historiador argentino Halperin Donghi. No Brasil, por sua vez, o consenso em torno da escravidão foi elemento decisivo para selar a coesão política.
Em paralelo ao esfacelamento da Colômbia, alguns dos aspectos mais progressistas do ideário de Bolívar foram relegados a segundo plano, como a abolição da escravidão e a busca por instituições políticas e culturais próprias. Embora emancipadas, as novas repúblicas perpetuaram as determinações estruturais que caracterizavam a sociedade colonial, como a desigualdade social, a dependência econômica e o mimetismo cultural.
Diante dessa realidade, ainda no século XIX vozes progressistas já apontavam a necessidade de uma “segunda independência” da América, como o cubano José Martí. É nessa perspectiva que Hugo Chávez reivindicará o legado de Bolívar. Ao vencer as eleições na Venezuela em 1999, Chávez estava longe de ser o primeiro presidente a remeter seu projeto a Bolívar. Pelo contrário, o historiador venezuelano Carrera Damas mostrou como um “culto bolivariano” emergiu como ideologia de unidade nacional no país já em meados do século XIX.
A novidade é que Chávez articula três aspectos associados ao legado bolivariano em um processo de mudança social autodenominado como “Revolução Bolivariana”. Em primeiro lugar, Bolívar é recuperado como uma das três raízes do nacionalismo venezuelano, juntamente com Simón Rodríguez e Ezequiel Zamora (1817-1860), precursor da luta pelo acesso à terra. Em segundo lugar, há uma atualização do legado progressista de Bolívar, plasmado na ideia de que é necessário realizar uma segunda independência. Por fim, esta emancipação é associada a um projeto de unidade continental, entendido como um caminho necessário para superar dilemas comuns.
Em resumo, Chávez diz três coisas ao reivindicar Bolívar: a Venezuela e a América Latina precisam de uma segunda independência; esta revolução deve ter uma cara própria e este processo deve ter como horizonte a unidade latino-americana. Nas palavras do ex-presidente, morto em 2013: “O novo bolivarianismo (…) é exatamente o que este mundo desideologizado venezuelano e latino-americano necessita, para irromper com uma proposta séria, original e própria da nossa idiossincrasia”. É esse o bolivarianismo da Venezuela contemporânea. Já o que seus críticos alegam que seja, é outra história.

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